7.12.11

só as "atualizações mais importantes"

"Dizem que na vida a gente se acostuma com tudo; não é verdade. Anos já se passaram e eu não me acostumei. Ninguém esquece uma saudade, nem substitui um amor."

Confesso: tem uns diálogos de novela que me tiram do sério. Quando tiram assim, tanto melhor, porque me levam a refletir, de fato, sobre caminhos que a vida segue, persegue e dos quais desvia. Não preciso buscar isso necessariamente numa homilia ou num livro, pode ser num meio "de massa", mesmo. Alguns diálogos --a maioria, nesses de novela --entram por um ouvido, provocam, tamanha a chacota ao senso de realidade, mas logo se dissipam. Não ocupam espaço no hd afetivo.

Esse aí foi um trecho de 'diário' que uma personagem escreveu a outra, sua irmã, durante as transformações do lado de fora de um quarto de hospital. Uma das jovens, em coma durante anos, não viu a filha crescer e inaugurar as primeiras "primeiras ações" de vida --os primeiros passos, a primeira festinha junina, o primeiro dodói. Mas a irmã-e-melhor-amiga registrou tudo no blog, lido em meio aos flashbacks da pequeninha aprontando lindezas.

Quando ouvi isso, lembrei na hora de um texto da Marina Colasanti já postado aqui. A gente se acostuma, mas não devia. Mas qual a saída pro não se acostumar: enganar a lembrança? Modificar a memória --que não precisa de esforço pra bater à porta --com subterfúgios diversos?

Não acho que a gente se acostume. O que a gente faz é deixar as saudades adormecidas e as dosar de uma maneira a se levar a vida adiante, sem olhar muito pra trás porque a estrada carece de atenção, sempre. E uma atenção vigilante, sóbria. Porque fixar os olhos num ponto e fingi-la, ao menos pra mim, é algo que nem nas aulas de yoga costuma dar certo.

As sensações e pensamentos sobre o diálogo das duas irmãs vestem como uma luva macia, mas difícil de encaixe perfeito em todos os dedos, num dia como hoje. "Anos já  se passaram" e eu não me acostumei com a falta do abraço e do beijo na avó querida que foi a segunda mãe, tão presente, e que completaria anos neste dia 6. "Ninguém esquece uma saudade", nem substitui um amor --não mesmo.

E no caso de dona Benvinda, que chamava os netos de "meu passarinho" de um jeito tão cândido, a saudade fica mantida em cativeiro ao passo que o amor vira o alicerce pros outros amores que vão agregando os retalhos e compondo a colcha. Sem substituições: só com pequenas e grandes emendas que são a analgesia às pedras que formam também uma crosta de pés resistentes.Ou os nós que tornem o bambu mais forte.

Acredito que esse referido é verdade, passarinho.
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don't know what save you from - kings of convenience


26.11.11

remédio para o desconcerto

Hoje não há muito o que escrever, só o que compartilhar.
O título do texto que segue é o mesmo da compilação de crônicas do Drummond publicadas na década de 70 no Jornal do Brasil. Notei que várias das citações usadas nas redes sociais atribuídas ao poeta são trechos editados --pra usar um eufemismo -- de textos desse livro. Recomendo a leitura. Afinal, ele mesmo avisou, "a crônica deveria propiciar, como os dias lindos, que cada um deixasse de lado, mesmo por instantes, o peso dos acontecimentos mundiais, trágicos, esmagadores, para degustar a finura da atmosfera e a limpidez das imagens recortadas na luz."
Quem sou eu pra discordar?

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Os dias lindos

Não basta sentir a chegada dos dias lindos. É necessário proclamar: "Os dias ficaram lindos."

Acontece em abril, nessa curva do mês que descamba para a segunda metade. Os boletins meteorológicos não se lembraram de anunciá-lo em linguagem especial. Nenhuma autoridade, munida de organismo publicitário, tirou partido do acontecimento. Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos.

E aboliram, sem providências drásticas, o estatuto do calor. A temperatura ficou amena, conduzindo à revisão do vestuário. Protege-se um tudo-nada o corpo, que vivia por aí exposto e suado, bufando contra os excessos da natureza. Sob esse mínimo de agasalho, a pele contente recebe a visita dos dias lindos.

A cor. Redescobrimos o azul correto, o azul azul, que há meses se despedaçara em manchas cinzentas no branco sujo do espaço. O azul reconstituiu-se na luz filtrada, decantada, que lava também os matizes empobrecidos das coisas naturais e das fabricadas. A cor é mais cor, na pureza deste ar que ousa desafiar os vapores, emanações e fuligens da era tecnológica. E o raio de sol benevolente, pousando no objeto, tem alguma coisa de carícia.

O ar. Ficou mais leve, ou nós é que nos tornamos menos pesadões, movendo-nos com desembaraço, quando, antes, andar era uma tarefa dividida entre o sacrifício e o tédio? Tornou-se quase voluptuoso andar pelo gosto de andar, captando os sinais inconfundíveis da presença dos dias lindos.

Foi certamente num dia como estes que Cecília Meireles escreveu: "A doçura maior da vida flui na luz do sol, quando se está em silêncio. Até os urubus são belos, no largo círculo dos dias sossegados". Porque a primeira conseqüência da combinação de azul e leveza de ar é o sossego que baixa sobre nosso estoque de problemas. Eles não deixam de existir. Mas fica mais fácil carregá-los.

Então, é preciso fazer justiça aos dias lindos, oferecer-lhes nossa gratidão. Será egoísmo curti-los na moita, deixando de comentar com os amigos e até com desconhecidos que por acaso ainda não perceberam o raro presente de abril: "Repare como o dia está lindo". Não precisa botar ênfase na exclamação. Pode até fazê-la baixinho, como quem transmite boato e não deseja comprometer-se com a segurança nacional. Mesmo assim, a afirmação pega. Não só o dia fica mais lindo, como também o ouvinte, quem sabe se distraído ou de lenta percepção sensorial, ganha a chance de descobri-lo igualmente. Descobre e passa adiante a informação.

A reação em cadeia pode contribuir para amenizar um tanto o que eu chamo de desconcerto do mundo. De onde se conclui: deixar de lado, mesmo por instantes, o peso dos acontecimentos mundiais trágicos, esmagadores, para degustar a finura da atmosfera e a limpidez das imagens recortadas na luz, é um passo dado para reduzir o desconcerto, na medida em que a boa disposição de espírito de cada um pode servir de prefácio, ou rascunho de prefácio, à pacificação, ou relativa pacificação, dos povos e seus dominadores. Em vez de alienação, portanto, o prazer dos dias lindos é terapia indireta.

Pode ser que o desconhecido lhe responda com um palavrão, desses em moda na sociedade mais fina. Não faz mal. Não se ofenda. Ele descarregou sobre a sua observação amical o azedume que ameaçava corroê-lo no íntimo. Livre desse fel, talvez se habilite a olhar também para o céu e a descobrir mesmo certa beleza esvoaçante no urubu. De qualquer modo foi avisado. Já sabe o que estava perdendo: a consciência de que certos dias de abril e maio são mais lindos do que os outros dias em geral, e nos integram num conjunto harmonioso, em que somos ao mesmo tempo ar, luz, suavidade e gente.  
(Carlos Drummond de Andrade)

3.10.11

lejos, lejos

Os portais noticiam que a cúpula da emissora, numa reunião em Paris (sintomático), decide tirar o "humorista" da bancada do programa de TV que já teve o frescor de algo realmente novo e inovador. Repare como é fácil pensar que ambos são conceitos sinônimos. Pra mim, nunca foram.

O sujeito pode achar graça e fazer piada com as mulheres (as "feias", pelo menos) vítimas de estupro. Pode sugerir canibalismo ou pedofilia com o filho da cantora que é casada com o amigão do ex-astro de futebol. Pode desligar o telefone do repórter com um "eu só falo sobre o artigo (elogioso) do NY Times, é sobre isso?" (era sobre um inquérito, caro, que pena) ou sei lá, pode achar que os ataques contra casais gays na avenida Paulista são coisa de gente bipolar --afinal, não há limites pra piada que gente como ele se propõe a fazer, não é?

Dias atrás, numa conversa que --não me lembro como --enveredou para religião, a pessoa que falava comigo insistia no total livre-arbítrio do homem sobre o destino, sobre as "fortunas guardadas por séculos" pela Igreja católica e sobre o quão pedófilos ou tarados podem ser os padres de um modo geral. Graças a sabe a quê? Ao celibato.
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Você considerar que um humorista seja racista, preconceituoso ou apologista de atitudes criminosas (o que, pela lei, o torna tão criminoso quanto) logo faz levantar as armas dos que condenam a "patrulha ideológica", ou a "censura" --e gente que sequer ouviu, algum dia, um relato de quem de fato sofreu não só com a censura propriamente dita, mas com outras agruras mais doloridas de um regime ditatorial.

Dizer que uma religião é regida por homens e alimentada por algo tão subjetivo quanto a fé de cada um levanta um olhar de pena. Sugerir que o respeito entre os crentes e os incrédulos seria uma saída para uma pretensa (e ingênua, será?) harmonia, em vez de uma parte tentar convencer a outra com críticas pouco construtivas, soa como sintoma de idiotice. "Questão de convencer ou de questionar?", recebi. Tem pergunta que não carece mesmo de resposta.
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Talvez eu seja careta demais, simples demais nos meus pontos de vista ou, vai saber, ainda muito inconsistente neles pra afirmar, por A+B=C, por que confio demais ou rechaço por completo todos eles. Sabe aquela história da construção permanente? Minha crença é nisso. A vida é rica demais pra oferecer uma resposta pronta ou cheia de argumentos que comprovem uma tese única sobre cada aspecto dela.

E mesmo num tempo de liberdade como se propaga que é esse nosso, prefiro pensar que mesmo os tijolos de quem impõe a cor e a marca da argamassa são necessários e motivos pra eu agradecer. Aí sim é que nem precisa me convencer.
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8.9.11

eso no ecxiste

"Você já se adaptou?", pergunta em 11 de cada 10 oportunidades fora de SP. "Está feliz?", perguntam os queridos, mas não exatamente íntimos.

Não sei por que, esses dias encasquetei (#vem31feelings) com isso. Adaptação, na psicanálise, é algo como a ação do sujeito que modifica o meio e cria o equilíbrio do próprio ego. Não sei se um "sim, certamente" caberia dentro dessa interpretação: porque não sei se me adaptei à cidade ou se ela que me acolheu --com toda a aspereza que desponta pra quem insiste em ver nela só isso --me devolvendo, desafiadora, o velho "decifra-me ou te devoro".

Duas frases que me chamaram muito a atenção nesses 10 meses de vida paulistana. Paulista. Uma é a pichação num bar da Consolação; pichação velha, segundo os caros daqui. "É pouco hoje pra tanto ontem", já perto da Paulista, justamente o reduto mais repleto de hojes diversos na cena da capital. Sotaques, tipos, trejeitos, gírias, tudo misturado, diferente e cheio de sentido na massa que pára o trânsito dos carros quando resolve atravessar em bando cada esquina.

Imagino --na verdade, eu só tento imaginar --o beco em que deveria estar o pichador, ou quem bolou a frase, pra achar mesmo que o passado poderia tomar um espaço tão grande em presente e futuro. "O presente é tão grande / não nos afastemos". O que Drummond interpretaria? "Não nos afastemos muito / vamos de mãos dadas". Ok, Drummond, você venceu.

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"Não existe amor em SP", canta o rapper que já assinou "Criolo Doido", hoje só Criolo. Essa outra frase, nome de música, na verdade mais me desafia a achar um contraponto do que necessariamente me causa estranheza. "Não precisar morrer pra ver Deus / não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você", continua o rap melódico que compara a cidade a um buquê de flores mortas num belo arranjo.

Não sei se ele canta a São Paulo do trânsito desesperador (minhas mãos e pés que o digam, pois sofrem de nervoso) e da sujeira (quanta sujeira, quanta); a São Paulo das filas intermináveis pras tarefas mais simples ou pras mais pitorescas; a São Paulo das chuuu(...)uuvas de janeiro e do tempo que pode demandar manga curta ao meio dia e pashimina no pescoço, horas mais tarde. A São Paulo que vê filas no parque --verdadeiras filas indianas de bikes, triciclos e de gente correndo atrás de saúde (eu acho) --; que tem o transporte público caro (claro, o nosso é também o mais caro "do Brasil") e só eficiente porque, de carro, se levariam horas a mais. Só por isso.

Aí eu vejo de manhã, quando muita gente ainda está mal humorada pelo sono que sobra, desconhecidos dizendo um "pode segurar, por favor" ao oferecer o próprio braço como barra pra que a pessoa ao lado não surfe a esmo, entregue ao desequilíbrio, no vagão inundado por aquele mar humano.

Aí eu me esqueço do bilhete do transporte no dia chuvoso e conto as moedas, insuficientes --o cartão de débito não garante segurança ilimitada, sabe --, sob o olhar da senhorinha japonesa que, sei lá se ela se lembra da cara de tantos, mas fica ali na catraca todo dia. "Quanto você tem aí?" "R$ 2,25". Ela olha pro senhorzão da bilheteria blindada e diz um "pode vender. A diferença fica por minha conta" que salvou, se ela soubesse, mais que uma manhã de trabalho sem (muito) atraso. Salvou uma certeza, com broto já cheio de folhas novas, de que a letra do rapper está tão na superfície quanto um "você se adaptou?"

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Gosto de conversar com os taxistas. A diversidade de gente que eles transportam, tenho pra mim, os torna profissionais multidisciplinares: cada um tem um lado meio psicólogo, meio roteirista de novela e de documentário, meio antropólogo, meio cientista político, meio policial, meio animador de platéia, meio agente da CET, meio meteorologista, meio ombudsman do Datena ou dos "inimigos" do Datena. Alguns são meio escrituários de repartição pública, é verdade. Mas a imensa maioria tem pedaços de história de vida que quer passar adiante, ou quer receber a de quem está ali, ainda que temporariamente.

Ontem, o tiozão me explicou que a filha, recentemente falecida, tinha dito pouco antes pra ele que não sabia como fazer com que a filhota de dez anos não gastasse tanto, e sim, economizasse. Ele garantiu que tinha a solução: prometeria à neta que lhe daria o mesmo valor economizado se, ao cabo de cada mês, ela tivesse alguma quantia nos bolsos. Se a menina tivesse R$ 30 e os economizasse, portanto, teria R$ 60 na mão dali um tempo. Por essa, nem dona Armênia esperava. Estoicismo na chon, pensei.

Ele contou a história com umas gargalhadas sinceras, citando as elucubrações da neta pra deixar de lado, por exemplo, o lanche do McDonald's. "É um bom laboratório, não? Porque deve sair bem mais em conta pro senhor, no final", sugeri. "É mais em conta sim. Mas não é bem um laboratório: eu faço isso há anos com meu filho e é um sucesso". Nova gargalhada dele --acho que da própria esperteza, deve ter pensado.

E então, no meio hoje daquela fila de bikes e patins ansiosos pra passar, e, logo em seguida, na brisa que o chafariz gigante do parque proporcionou, eu tive uma grata sensação de que São Paulo tem muito desse tiozão do táxi. Ou não haveria tanto contraponto pra tanta frase pronta sobre esta terra, acredito.

Fitz & The Tantrums - Breakin' the chains of love

29.5.11

fotossíntese

A perda do bonde. Do ônibus. Do "avião de linha" (porque, afinal, o avião é - e não é - meu). É recorrente essa figura nos meus sonhos, não sei nem há quantos anos já. Pouco, mas pouquíssimo recorrente é aquela coisa de você acordar, se ligar que estava no meio de um sonho e decidir: vai voltar de onde parou, assim, como se a consciência fosse mera espectadora de um mundo paralelo sob o qual o controle é facultativo.

O curioso de acontecer isso hoje pela quarta vez (em mais de 30 anos) foi perceber que cinco minutos de sonho - talvez os mais afobados das minhas eternas perdas de viagem - equivaleram a exata uma hora de vida; o rádio-relógio judia, mas não mente. Na real, isso não tem importância alguma: me basta o alívio de acordar dessa vez (após muitas-e-espetaculares horas de sono) com a dúvida de ter perdido ou não a bendita condução. Porque, dessa vez, tinha duas razões de vida segurando o ônibus pra mim na rodoviária.
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Na outra ponta do meu sonho, talvez nas horas bem anteriores, encontrei novamente uma praia onde mãe e filho me acompanhavam na vacina contra a gripe. Muita conversa e afinidade, e um rosto conhecido ao largo, na orla, misturado, nele próprio, a outras feições também conhecidas.

Gozado, mas nem é questão de eu ser má fisionomista, não. Acho que minha memória talvez seja mais esperta do que eu pense, porque ela simplesmente deu pra me confundir. Cefalotórax + abdôme no que passou, é mais ou menos por aí.
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Lá fora faz uma vento gelado de doer os ossos. Bom pra se manter bem acordado.
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Eu tinha escrito o último texto pra esse blog. Postei. Deletei. Também é recorrente o pensamento de que tem algo ali adiante, e o meio de transporte até lá, ainda que eventualmente se perca por negligência, não cessa.
Esse movimento é contínuo. Ao menos, se pretende ser.
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18.4.11

de novo

Atravessar a Eusébio Matoso (ou Rebouças? nunca vou saber) ou encontrar o mendigo de sempre, com a perna torta de sempre, com a caneca imunda, à mão, de sempre? Essa é a dúvida que me faz partir pra rua dos Pinheiros sempre que preciso ir à agência bancária mais próxima. O luxo da Faria Lima é logo preterido pela deterioração humana e urbanística do Largo da Batata só pra evitar de ver, novamente, a cena de engavetamento bem ao lado, à uma da tarde.

O mendigo pedinte na porta do banco é menos corrosivo aos olhos e ouvidos - pode isso? - que o trânsito dessa cidade. Por enquanto penso assim.
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Reparei que a mendicância é meio um status de vida por aqui. São muitos, nos mesmos bat-pontos, e com uma altivez que eu não estava acostumada a ver num sem-teto. Lembrei da comunidade antiga "nos EUA, até pobre fala inglês" do empoeiradíssimo orkut...

Esses dias, chegando ao metrô, ouvi dois senhores no terminal de ônibus do lado de fora comentarem animadamente há quanto tempo 'moravam' nas imediações. São dois mendigos que às 11h estão sempre batendo papo, chapéu ao chão, e à noite dormem bem mais cedo que eu: quando passo, já estão na calçada oposta cobertos sabe-se lá com o quê.

O senhor do pé torto à porta do banco tem um jeitão mal humorado. Confirmei no dia em que perguntei a ele se precisava de ajuda pra atendimento médico e ouvi um "preciso é de dois real, moça, vai ter?", na resposta capaz de embriagar caso o tête-à-tête durasse mais alguns segundos. Ok, desculpa por existir, tá?

O estranho é que esse mendigo do banco (hum. faz sentido...) é gordo. Mendigo gordo. Antes de pensar na destinação ilícita do trocado, prefiro imaginar que não dando dinheiro eu estou é ajudando o sujeito. Não vai comer porcaria na rua. Não vai!
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Aí lembrei da senhorinha de 70 e muitos anos que ficava à porta do mercado Musamar, em Londrina, fazendo seus biquinhos de crochê em pano de prato. Vendia cada um por cinco, sete reais, mas com uma dignidade impossível de mensurar.

Atitude digna, sem dúvida. Mas cada vez que eu via aquela mulher tendo de vender pano de prato por necessidade, dava era um misto de nó na garganta e de revolta. País sem valores. Ou de valores trocados.
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Eu disse aqui um dia que queria que 2010 fosse um ano que deixasse saudade só das coisas feitas, executadas, não deixadas apenas na intenção. Cumpriu o voto.

Um 2011 de (re)descobertas, encontros e reencontros pode complementar a intenção de outrora. Posso dizer que, musicalmente, meu ano tá bem razoável.

vermelho - marcelo camelo

11.4.11

desencaixotaterapia

Quando choramos a morte de alguém, na verdade choramos nossa própria morte. Essa ideia é de Santo Agostinho. Ouvi-la hoje depois de uma tragédia como a que se abateu sobre aqueles pais, avós, irmãos, padrinhos e amigos faz muito sentido. Muitos morreram junto com seus pequenos, e sentir compaixão por essa gente toda, mesmo sem conhecer quaisquer deles, é um sinal de que a vida agitada, apressada e no vaivém insano da impessoalidade que atropela até mesmo o olho no olho não está de todo perdida.

Vai demorar pra esquecer daquela avó que lembrou com dor: tinha se despedido com um "Vá com Deus, Deus te acompanhe" sem saber que nunca poderia repetir o gesto à neta de 13 anos.

A dor dessa mulher me ajuda a entender e pôr panos quentes e macios na minha: afinal, a vó (diferente de 'avó', entende?) tão querida e tão saudosa cumpriu a ordem natural das coisas. Não passou pela tristeza de ver isso se inverter numa realidade embrutecida por homens.
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O massacre em Realengo aconteceu no "dia do jornalista". Na manhã seguinte, um jornal daqui de São Paulo estampava, em nada menos que meia página, a foto do rapaz doente (ou, pro béin-sensato governador fluminense, "animal") abandonado em sangue, cabeça perfurada --a cereja, em suma, num bolo de completo desvario. Dia de quê? Comemorar o quê? Obrigada, eu passo.
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É preciso se deixar morrer todos os dias.
Também faz todo o sentido, cara pálida.
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Abri ontem as últimas caixas da mudança (passa uma brisa por meu quarto agora, impressionante), depois de mais de mês de CEP novo. Segui os conselhos duma querida e, caso mude um dia novamente, prometi pra mim mesma o deadline máximo de uma semana pra me desfazer de todo o papelão. Não pode, não pode!

Voltei a ter minhas plantas - e gozado como são elas, e não a organização xuxuzinha do apê, que o transformaram de 'casa' em 'lar'. É a ordem natural daquilo que renasce, não? Também faz todo o sentido.
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mapa mundi - tiê e thiago pethit

22.3.11

terceira do singular

Criou um ramalhete de palavras/pensamentos dispersos, abotoou o casaco na noite escura/gelada e puxou da memória as saudades tão antigas e escondidas/esquecidas nos versos e rifles. A vida soava tão mais simples/absurdamente simples com 17 anos a menos, impressão? Hm, a checar.
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Se a insônia veio dividir aluguel, a preguiça de dirigir tá arrumando as malas. Sentiu de fato.
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whatever - oasis

17.3.11

bocadinhos

Pitangas caídas ao chão. Enormes e suculentas pitangas.
Damascos espalhados. Macios. Carnudos como nunca vi.
E um casal de idosos me ajudando a apanhá-los, ao longo de uma escadinha antiga e amarelada pelos raios do sol poente. Era uma espécie de Londrina, uma espécie de cenário de interior da tenra infância, familiar e ao mesmo tempo desconhecido do racional. Copiou?
Curioso como até em sonho mudam as estações.
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jealous guy – tiê e thiago pethit

3.3.11

cê vê?

E então o rapaz viu o assento "especial", azul-bebê, e sentou a filhota, pitica, que segurava a boneca no colo. Se ajoelhou e foi brincando durante o caminho. O longo caminho. Pediu que ela não jogasse o papel das bolinhas de chocolate no chão e foi atendido com um gracejo tão espontâneo que desarmou a seriedade dos que portavam semblantes e guarda-chuvas fechados – ah, esses alagamentos... – na tarde cinza de um pré-carnaval estranho que só vendo.

Nunca o caminho até a consolação me pareceu tão rápido. Acho que foi aquele amor sem troca, tão fecundo. Bonito, assim.
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There’s too much love – Belle and Sebastian

19.2.11

o sepapeficoa e eu

Quando se pensa ter noção do quanto ainda se pode viver - ou sonhar viver - a vida adiante, algumas emoções parecem ser eternas. E esses verbos de ligação, vou te dizer uma coisa, são uns danados.

O eterno coração na garganta ante cheiro, semblante parecido ou a lembrança mais forte de pessoas ou situações marcantes.

O eterno sentimento do sublime que se almeje eterno. A eterna busca pela simplicidade, cumplicidade, partilha, sem que isso resvale pro lugar-comum da esquálida rotina.

A eterna saudade. E a eterna vontade de esquecer que reforça, não entendi bem ainda, eternidade ou saudade. Dúvida eterna?

Aí você se lembra do tempo, verdadeiro senhor do eterno, e descobre - naturalmente - que o coração não é assim tão irracionalmente tolo na proporcionalidade: deixa de bater naquela estaca de desconforto temporário. Substitui, enfim, as reticências pelos pontos finais.

E então você olha pra mesa ao lado, vê passado e presente naqueles segundos-chave e nota os verbos que os ligam, sem adjetivos. Foram. São. E nem por isso a noção de que se tem muito ainda a viver - ou sonhar viver - a vida acabou: é que o caminho pode ser uma belezinha também na temporalidade indefinida.

Um alívio hoje, tanto (e bota tanto) tempo depois, ter indícios dessa certeza.
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you and I - wilco

15.2.11

o livro das perguntas

Semana passada eu assistia ao telejornal preferido quando, súbito, entraram as imagens do incêndio colorido que deixou tanta gente chorosa; outros tantos, inseguros: qual seria a dimensão de tudo aquilo? Haveria o festerê do carnaval carioca?

E então na semana passada eu me assustei (sim, não me desabituei a) com tanta gente caçoando, ironizando a situação daquelas comunidades que passaram meses trabalhando - muitos, em situação mesmo de emprego formal - pra perder, puxa vida, meros "bens materiais". Afinal, diferentemente dos que perderam as 900 vidas (número ainda não fechado) na região da serra fluminense, que era mesmo perder os frutos que objetivavam, numa análise rasa, uma... festa?

Quantas vidas foram resgatadas de escombros diferentes de lamaçais num trabalho desse, de comum-unidade? Não ouvi essa pergunta. Aliás, não ouvi essa pergunta dos mesmos que pregam - que coisa, menino - a solidariedade com o próximo. Solidariedade com aquilo com que eu simpatize, é isso? Não, obrigada. Essa, eu passo.
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"Em que lugar você coloca as pessoas na sua vida? Suas palavras as ajudam a se erguer, ou, encontrando-as feridas, ajudam a marcá-las um pouco mais?"

Essa pergunta ontem deixou tanta gente de cabeça baixa, semblante pensativo, olhares mudos, que não é difícil entender que o caminho, dentro e fora, é longo demais, espesso demais - espesso como lama. E tirar o iceberg resistente a esse meio requer mais que simpatia à própria ideia: requer respeito.

De repente, é como se eu quisesse um mundo feito de Lego. Não vai ter, né? Mas eu posso não subutilizar as minhas peças, não posso? Ah, posso.
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I'll try anything once - The Strokes

11.1.11

ponto transitável de alagamento

Os ouvidos acostumados aos fones estranharam quando a mensagem pelo alto-falante do metrô se estendeu além do habitual próxima-estação, dois pontos. Era pra todo mundo descer, que aquele trem seria recolhido. Pressa demais pra conjecturar. Os cinco lances de escada 'rolante' (ótima agilizadora pra gente como eu) em 10 segundos ainda vão me fazer voltar à corridela de rua. Tô no esquema, cedinho.

Atrás da linha amarela de segurança - imaginação voa longe sobre essa suposta "segurança" -, olhei pro lado pra ver quantos falsos desalojados, nesse dia de desabrigados de verdade, estavam ali em situação semelhante. Toda a calma pra constatar e aí sim conjecturar, fôlego recobrado: 10 pessoas naquela entrada de porta. Oito delas prestando atenção à tela minúscula do celular, melhor estilo cara-crachá, 9 com fone de ouvido. Alheias, aparentemente completamente alheias, a seus acompanhantes anônimos.

Lembrei do "Walking dead", o seriado fantástico (literalmente ou não) dos humanos que tentam encontrar a salvação contra os zumbis e achar o resto da civilização não "contaminada". Quem for mordido, adeus: é a morte certa pra ressuscitar, ávido por sangue e carne, como um "deles".

Pensei no presentinho que vou postar via Correio, depois de tantos anos, e na preguiça que estava me dando a ideia de escrever uma carta (tenho duas pra). Lembrei dos zumbizinhos da estação Paraíso e mudei de ideia: tenho no máximo só mais 5 minutos aqui - acho que é mais que suficiente pra se achar o CEP da pessoa querida.

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Pra sonhar - Marcelo Jeneci

7.1.11

com-pressa

Uma semana de folga do trabalho de um mês e o sono REM voltou a ter comigo, esse lindo. Algumas surpresas, é claro - nunca imaginava balbuciar "James Franco" pra um técnico de computador que (claro, só mesmo em sonho) batia à minha porta. E olha que nem sou tão fã assim do moço. Preferia um técnico Jude Law, mas ok-ok. O REM tava em greve, e eu tô deixando pequeninices do tipo de lado. Chega de ressalva boba, tio.

Quarta, primeiro dia útil da semana de três dias, esse REM me pregou uma peça. Não bastava descansar a cabeça (um pouco mais): ele tinha, a exemplo do que há anos faz com maestria, que me deixar pensativa um dia todo. Talvez dias, meses, até que o sal dissolva por completo. Alguns sonhos demoram a se revelar apenas sonhos - e às vezes podem ser mesmo sinais que o inconsciente de fato manda.

Só não queria, mesmo em sonho, ter ciência disso. E do porquê disso. Não é sonho, pô?
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Coisa linda não é sorrir - apenas. É fazer sorrir junto.
(Não tem REM passado que resista a essa certeza de três décadas)
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Lampejo do ócio balbuciativo: ukelele - é preciso.
Lampejo do ócio laborativo (conceito, ultimamente, super-que-sãper subjetivo): minha casa, minha vida.
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Dar-te-ei - Marcelo Jeneci


pense num álbum ensolarado, essa é a palavra. num encarte arrojado sem ser afetado ou pretensioso, esse é o sentido. diferente de tudo o que você já viu ou ouviu, esse foi o baque. poesia urbana, tátil e afetiva. simples e complexo.
ufa, passou o caminhão.