27.9.10

farol de neblina

Demorei alguns anos pra pedir a segunda via do meu diploma, extraviado numa besteira que nem vale a pena comentar, ou a trilha pra isso aqui seria a da turma do finado Mussum. R$ 95 pilas pra papel vegetal, 40 dias de espera, o fim de outra espera com o danado na mão. Bom, bom, bom.

De manhã, a certificação de que sou jornalista formada - se não, pro Ministério do Trabalho, serei jornalista profissional, sem deproma. De tarde, a certificação de que se pode ser o que quiser, se os olhos não estiverem fechados, os ouvidos tapados e a boca, convenientemente cerrada. Nunca tinha visto tão de perto, e numa situação tão banal, uma cena de abuso de autoridade. O poder da farda inebria, evapora a pele civil que há por debaixo dela, pra alguns, e atravessa os direitos do outro de uma forma desastrosa. Isso é triste de ver, mas açoita algo mais que a nuca daquele rapaz que tomou um choque e uma cacetada já em condição de dominação: o outro é apenas o caminho por onde eu posso e devo passar. Que merda, isso. Sorte e azar, eu e um amigo fotógrafo vimos e, antes que nosso queixo caísse um pouco mais, registramos tudo na memória e no cartão da nikkon. Ouvi um "deixa eu trabalhar, moça" do fardado e pedi a ele que, daquela forma, não precisava guardar a segurança de quem lhe confiava - e bancava, mensalmente, com benefícios - a missão. Às 4 da tarde, em centro "cívico", é assim que se vê um sujeito agir se o seu motorista atrasar (ufa) um pouquinho. À noite, fora desse espaço de civilidade, não quero imaginar o que rola, ou a minha noite vai ser longa no duelo de pensamentos. E não dos pensamentos de gente louca e doce com quem convivo.

No dia em que pedi de novo meu diploma, renovei, sem ele, a crença nas transformações que o ser humano pode fazer à medida em que não se deixe transformar em pedra. Hoje também foi dia da caridade - e "cáritas" vem de amor, solidariedade - e um dia de muita, mas muita neblina em Londrina. De manhã e à noite, ainda bem.
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florindo - mariana aydar

21.9.10

efeito colateral

Eita mundão velho sem porteira. Porteira pras não-meias-palavras, bem entendido. Mundão de eufemismos que, no raso, no raso, não soam mais que fajutices da falta de coragem, de tato ou simplesmente do raio que o parta. Que me importa; só acho mesmo, de verdade, uma besteira só, usando também um eufemismo. Vamos a elas.

Por exemplo: o sujeito se julga "sincero demais" (ou pretende sê-lo, mas também não consegue). Não é sincero - é grosso, insensível à opinião ou ao sentimento alheio, o umbigo dele é o que importa. Resumindo: "sou foda e o mundo que se vire". Encaixa-se a expressão, ocasionalmente, no igualmente desprezível "o que eu tenho de falar, falo na cara". Adoro gente corajosa assim - esses costumam ser os primeiros a encontrar outros corajosos no caminho, com ou sem um espelhinho na mão.

"Não querendo me intrometer, mas já me intrometendo..." - claro que queria se intrometer. Se não, que sentido teria a sua vida, não é mesmo? Você vive dos restos que caem das histórias alheias. Quem sabe compõe a sua, desses retalhos, algum dia.

"Esses preços estão pra hora da morte" (que coisa antiga...) - então, pensando bem literalmente nas palavras, não reclame. Afinal, talvez você nem tenha de pagar por eles.

"Sou muito legal, mas quando pisam o meu calo..." - na verdade eu sou bacana quando convém. Quando você me sacanear, me encher o saco ou quando eu me enjoar de você, dou o chega-pra-lá e te mostro, de verdade, quem eu sou.

"Eu podia estar matando, eu podia estar roubando..." - mas estou fazendo algo de pouca ou nenhuma relevância a mim ou ao meu próximo, neste exato momento, a menos que esteja trabalhando pra pagar (por exemplo) o licenciamento obrigatório que o Detran, gentilmente, me lembrou esta semana.

"Menos é mais" - mentira. Se você ganhasse aquela Mega de R$ 90 e tantos milhões, não faria a caridade pseudo-reprimida desse eufemismo. Se ganhar e mudar de ideia, porém, já sabe. Levo você à agência BB do Calçadão em Londrina com a prontidão de um candidato numa comunidade carente e indecisa.

"Ei, como que você tá?" - não, seu tolo, não responda a sério. Foi só uma pergunta retórica. Poucos vão te perguntar isso fora desse contexto de intenções tão floreadas.
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Acho que tomei chá de realidade demais. Parei de usar açúcar faz tempo (minha saúde agradece a olhos vistos), mas não deixo que tornem o conteúdo do chá mais amargo do que possa ser (ou do que é, em ocasiões em que adoraria ter os eufemismos à mão). Afinal, gente sincera demais, legal até onde lhe convir e com ouvidos moucos e ombros frouxos pras respostas que não as suas próprias não me interessa.
Aí, sim, menos é mais.
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E viva a Primavera - como sempre digo, - minha estação favorita. Sem meias palavras, rica demais a carga simbólica dela.
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left and right in the dark - julian casablancas

19.9.10

ah, devia

Primeiro eu vi uma capa de livro dela, anos atrás, e o nome me chamou a atenção. Aí li um poema, um conto, um conto poético e, esses dias, tive a sorte de a ouvir falar da literatura como aqueles "pequenos entalhes na compreensão da vida". Segue Marina Colasanti, essa respeitável senhora que não tem blog porque não se acha "no direito de despejar sabedoria por aí", que há quatro décadas é casada com seu querido Affonso Romano de Sant'Anna, escritor e poeta - e de quem fala com um brilho nos olhos bonito que só -, e que moveu, como disse aos meus queridos do facebook - agora digo a meus quatro leitores do Bloco -, mais uma pocinha d'água parada. Creio que ela teve essa certeza também, ao me devolver o livro com o agradecimento pelo carinho, quando, na verdade, eu é que estava ali pra agradecer.
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Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(1972)
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N - Nando Reis e Os Infernais
pra lua amarelada, na sexta passada, ao sol que me espera, amanhã - adoro essas trilhas de estrada.