29.10.14

Escuto aquela música, tão nova e já tão parte da minha vida, e lembro das flores em contraste com o céu megalomaniacamente azul do Rio. São flores cor de rosa, não exatamente ipês, mas não sei o nome delas, desculpe.

Adornam as copas das árvores (como eu gosto de árvores, meu Deus), tiram a seriedade dos prédios e sorriem -- qualquer que seja a ruga de preocupação, desafio o sujeito a não desfazer ao menos uma delas diante dessa que considero uma pequena ou enorme epifania, à sua escolha.

Logo vêm as imagens de pôr-do-sol colecionadas não ao largo dos últimos 21 dias, mas de uma vida -- algumas tomadas mentais são mesmo inesquecíveis. Abro uma exceção pra lua maravilhosa indicada pelo taxista, extasiado pela beleza da cidade dele e por outro contraste: o da bola gigante com o Cristo iluminado.

Escuto aquela música, tão nova e já definitivamente tão parte da minha vida, e lembro das nuvens sob as asas do avião -- foram tantas e tantos esses dias, perdi a conta, mas é como se uma fase importante da vida finalmente tivesse chegado. Costas cansadas (quantas horas de sono são necessárias, afinal?), olhos desanuviados: um dia percebi essas nuvens como algo que simplesmente encobrem o sol, mudam a perspectiva por um instante, mas exigem paciência do caboclo para que, uma vez dispersas, ele consiga finalmente vislumbrar novamente a bola maravilhosa de luz que paira sobre sua cabeça.

Carrego essa metáfora há um tempo.

*

21.3.14

‘memória do coração’

Saudade imensa, Sebastião.
Hoje eu via uma reportagem sobre algo que me lembrou das nossas conversas de domingo e, não teve jeito, fui trabalhar com os olhos inchados.
Queria que esse espinho me fosse mais imperceptível, vô. Ou que, ao menos, a saudade não fosse exatamente uma coisa chata de doída. Não sei quem inventou que ela pode ser algo bom –talvez, imagino, à medida em que se tem saudade apenas de quem amamos ou queremos bem. Isso, pelo menos, faz todo o sentido.
“Olha só, o vô tava pensando em você agora. Tá boa, fia?” Como não ter saudade disso, vô? Tem expressão de carinho mais genuína, mais simples?
Como se preenchem esses vazios? Como se lembrar disso só com um sorriso no rosto, sem denunciar que a lembrança abarca, na realidade, outra sorte de sentimentos?
Acompanha minhas conquistas, Sebastião? Vê meus apuros? Torce, reza, zela, compreende minhas inconstâncias humanas? Ainda ilumina por onde passa?
Tanta pergunta, não, vô. É que tempo é algo absolutamente relativo quando se ama (o senhor bem sabe).

*
Nalguns dias, crescer se faz demais à revelia.

25.2.14

o tempo pairando em outro tempo

A pauta era uma reintegração de posse. Condomínio de apartamentos de 45 metros quadrados, inacabados, num lugar que, com o taxista nos deixando apavorados com velocidade e alguns abusos pra que fôssemos (d)os primeiros, levamos ainda uns bons 60 minutos pra chegar.

O cheiro de bombas de gás -- bombas lançadas também de um helicóptero policial, veja que coisa, minino --, gente chorando, gente dizendo que havia "crianças mortas". Gente jogando pedras em policiais. Policiais devolvendo com mais bombas. Xingamentos mútuos e feios --tive um upgrade momentâneo de repertório, mas, ufa, já esqueci.

De repente, horas mais tarde, notei que aquela fileira de homens sisudos e de fardas grossas, naquele calor absurdo, começavam a querer desmoronar --de sono. Um deles, de pé no fim de uma fila de uns 30, cochilava, balançava levemente pra frente e 'acordava' novamente. Outros dois cochilavam sentados na calçada suja enquanto os companheiros tapavam, desastradamente, a visão que se tinha da cena.

Dias depois, a pauta de uma manifestação no centro. Difícil definir o turbilhão de emoções, algumas muito ruins, nocivas, de ver pessoas sendo arrastadas pelo colarinho simplesmente por serem pedra no caminho. Muito, muito difícil ouvir aquele cidadão bem vestido, uns 40 anos, e uns moleques mascarados, tênis Asics e Nike nos pés, gritando "Não vai ter soldo!" à faixa gigante que mais parecia um desfile militar fora de época. Desfile gigante, por sinal, de pessoas que tiveram a folga limada para estar ali.

De repente, horas mais tarde, o amigo mostrou entre as fotos a de um coldre vazio, na cintura milica, ao lado de um crucifixo, de madeira, pra fora do bolso.

Afinal, ser humano mudou pra estar humano e não nos avisaram? Ou avisaram, mas ignoramos?