18.11.16

Autocensura: um dom.
*

23.6.15

A caminho do médico, o taxista tem a conversa entrecortada pelos bipes do aplicativo. Era um canto de azulão - e ele arregalou os olhos quando o identifiquei. "Meu avô era criador. Tinha canário da terra, canário do reino, curió, mas o azulão do bico chato era o xodó", expliquei. "Que bom então que serviu pra você se lembrar do seu avô", ele me disse. Lembrei do rádio com CD de passarinho que Sebastião colocava pra treinar as aves, pacientemente, e então Araújo e eu rimos. Ele, paraibano e sertanejo de Cajazeiras, fez seu próprio viveiro há duas décadas em Guarulhos, para a família e para os outros passarinhos que criava.

Acredito que essa deva ser a proposta dos afetos verdadeiros: evocá-los em momentos singelos e, ainda que a saudade que os envolva seja imensa, profunda, há que se conseguir extrair um sorriso. Às vezes cai um cisco junto, é inevitável, mas a melodia segue, de azulão, curió, buzina de carro, quero-quero na praia, bem-te-vi na praça perto de casa. Ainda me faz mais gosto o canto do azulão.
*
"Escrever ajuda a organizar o lado de dentro", ouvi esses dias. "E os afetos não têm data de validade, fique tranquila".
Vamo que vamo com a tarefa.
*

31.3.15

analisando

- "Você criou uma prisão a que poucos têm acesso".
- "Não há distância física para os sentimentos".
- "O inconsciente da gente é como um porão, que, muitas vezes, é escuro e está bagunçado. Você quer entrar nele? Está disposta a arrumá-lo?"
*
Era bem mais simples quando eu comprava sorvete de flocos perto da casa do meu avô, ou quando chupava jabuticaba no pé, na chácara da tia-avó, sem medo do tombo seguinte.
*
Desculpe por te subestimar, infância querida.
*

29.10.14

Escuto aquela música, tão nova e já tão parte da minha vida, e lembro das flores em contraste com o céu megalomaniacamente azul do Rio. São flores cor de rosa, não exatamente ipês, mas não sei o nome delas, desculpe.

Adornam as copas das árvores (como eu gosto de árvores, meu Deus), tiram a seriedade dos prédios e sorriem -- qualquer que seja a ruga de preocupação, desafio o sujeito a não desfazer ao menos uma delas diante dessa que considero uma pequena ou enorme epifania, à sua escolha.

Logo vêm as imagens de pôr-do-sol colecionadas não ao largo dos últimos 21 dias, mas de uma vida -- algumas tomadas mentais são mesmo inesquecíveis. Abro uma exceção pra lua maravilhosa indicada pelo taxista, extasiado pela beleza da cidade dele e por outro contraste: o da bola gigante com o Cristo iluminado.

Escuto aquela música, tão nova e já definitivamente tão parte da minha vida, e lembro das nuvens sob as asas do avião -- foram tantas e tantos esses dias, perdi a conta, mas é como se uma fase importante da vida finalmente tivesse chegado. Costas cansadas (quantas horas de sono são necessárias, afinal?), olhos desanuviados: um dia percebi essas nuvens como algo que simplesmente encobrem o sol, mudam a perspectiva por um instante, mas exigem paciência do caboclo para que, uma vez dispersas, ele consiga finalmente vislumbrar novamente a bola maravilhosa de luz que paira sobre sua cabeça.

Carrego essa metáfora há um tempo.

*

21.3.14

‘memória do coração’

Saudade imensa, Sebastião.
Hoje eu via uma reportagem sobre algo que me lembrou das nossas conversas de domingo e, não teve jeito, fui trabalhar com os olhos inchados.
Queria que esse espinho me fosse mais imperceptível, vô. Ou que, ao menos, a saudade não fosse exatamente uma coisa chata de doída. Não sei quem inventou que ela pode ser algo bom –talvez, imagino, à medida em que se tem saudade apenas de quem amamos ou queremos bem. Isso, pelo menos, faz todo o sentido.
“Olha só, o vô tava pensando em você agora. Tá boa, fia?” Como não ter saudade disso, vô? Tem expressão de carinho mais genuína, mais simples?
Como se preenchem esses vazios? Como se lembrar disso só com um sorriso no rosto, sem denunciar que a lembrança abarca, na realidade, outra sorte de sentimentos?
Acompanha minhas conquistas, Sebastião? Vê meus apuros? Torce, reza, zela, compreende minhas inconstâncias humanas? Ainda ilumina por onde passa?
Tanta pergunta, não, vô. É que tempo é algo absolutamente relativo quando se ama (o senhor bem sabe).

*
Nalguns dias, crescer se faz demais à revelia.

25.2.14

o tempo pairando em outro tempo

A pauta era uma reintegração de posse. Condomínio de apartamentos de 45 metros quadrados, inacabados, num lugar que, com o taxista nos deixando apavorados com velocidade e alguns abusos pra que fôssemos (d)os primeiros, levamos ainda uns bons 60 minutos pra chegar.

O cheiro de bombas de gás -- bombas lançadas também de um helicóptero policial, veja que coisa, minino --, gente chorando, gente dizendo que havia "crianças mortas". Gente jogando pedras em policiais. Policiais devolvendo com mais bombas. Xingamentos mútuos e feios --tive um upgrade momentâneo de repertório, mas, ufa, já esqueci.

De repente, horas mais tarde, notei que aquela fileira de homens sisudos e de fardas grossas, naquele calor absurdo, começavam a querer desmoronar --de sono. Um deles, de pé no fim de uma fila de uns 30, cochilava, balançava levemente pra frente e 'acordava' novamente. Outros dois cochilavam sentados na calçada suja enquanto os companheiros tapavam, desastradamente, a visão que se tinha da cena.

Dias depois, a pauta de uma manifestação no centro. Difícil definir o turbilhão de emoções, algumas muito ruins, nocivas, de ver pessoas sendo arrastadas pelo colarinho simplesmente por serem pedra no caminho. Muito, muito difícil ouvir aquele cidadão bem vestido, uns 40 anos, e uns moleques mascarados, tênis Asics e Nike nos pés, gritando "Não vai ter soldo!" à faixa gigante que mais parecia um desfile militar fora de época. Desfile gigante, por sinal, de pessoas que tiveram a folga limada para estar ali.

De repente, horas mais tarde, o amigo mostrou entre as fotos a de um coldre vazio, na cintura milica, ao lado de um crucifixo, de madeira, pra fora do bolso.

Afinal, ser humano mudou pra estar humano e não nos avisaram? Ou avisaram, mas ignoramos?

21.10.13

Sonhei com você e li seus e-mails antigos. Surpreendi-me com as feridas que o tempo cicatriza e com as nervuras que ele faz, por outro lado, sobre a terra que agora está seca. Acho que a surpresa maior foi por descobrir que aquela pessoa de outrora morri. Morremos.

“Às vezes, não sempre, acontece” de a moça ter esses devaneios. Aí ela olha pros lados, pensa no quão estúpida é a palavra humana e segue limpando o caminho. O caminho, aliás, como eu disse, é de terra.

*
Muita poeira por aqui, mas a lembrança do velho blog é uma coisa assim: uma lembrança. Acho que sou a única leitora dele e considero isso muito vantajoso, ainda que possa estar equivocada, pra um lado e pro outro.

2013 também deixa nervuras na minha antiga terra úmida.

24.12.12

feliz natal

Dona Leda. Funcionária pública, 51 anos, olhar em que se confundem resignação e impotência. É como se, de longe, alguém acenasse a ela permanentemente, dizendo: "Desta vez, não".

Perdeu o filho para as grades do Estado há sete anos. Recebeu-o de volta quando, por ordem de um juiz, ele tentou cursar Letras na universidade federal. Mudou o juiz, mudou a sorte do filho. Cana. Dona Leda dá o que os jornalistas chamam de "nariz de cera" para explicar que a pena é por homicídio. Pela conversa inicial, ela quase convence o interlocutor de que agressão fora o delito para os 12 anos da condenação.

O filho de dona Leda é um dos 69 presos contra os quais é investigada tortura em uma penitenciária de segurança máxima de Santa Catarina. No Estado das belas praias e do "terceiro metro quadrado mais caro do Brasil", como dizem três em cada dois taxistas, o filho de 33 anos da funcionária pública está dentro de uma unidade que não faz mais gênero ao corregedor-geral de Justiça, um japonês de fala grave e pausada: "É o presídio em que mais temos denúncias de maus tratos".

Não há desses casos em Jurerê, cercada de seguranças e champanhe nas taças à beira mar, fato. Do lado de fora do muro vigiado também por um joão-de-barro, dona Leda manda a dona do quiosque anotar a coca, o salgadinho e a água de outras mães e mulheres na conta dela própria. "Tá errado, Leda, não pode", alerta a dona do caixa.

Dona Leda olha o relógio, o sol forte, pensa nas duas semanas sem ver o filho e sussurra: "É uma angústia de viver muito grande, moça. Lá no fundo do peito, é uma impotência que não sei dimensionar". Ninguém sabe dimensionar a dor de dona Leda. Não tem lide essa dor, tem só um eterno nariz de cera resistente ao tempo.

-------------

Escrevi esse texto mês passado numa viagem de trabalho. E durante uma longa espera, sem comida e sob sol forte, para a entrevista que trataria de... direitos humanos. (ok, ok)

Semana passada, a espera pela luz verde do semáforo me pareceu mais longa que a de São Pedro de Alcântara. Era num cruzamento muito familiar de Londrina, por onde já passaram sonhos e ansiedades, mas que, naquele instante, me brecou o ímpeto das lembranças fraternas quando a senhorinha de cabelos muito brancos e sorriso no rosto enrugadinho me ofereceu panos de prato pintados à mão.

"É uma impotência que não sei dimensionar", dona Leda.
*

 

24.9.12

enfim, primavera

Era recorrente a imagem da viagem perdida, fosse o meio que fosse. "Qual a sensação advinda?" Dificilmente o sonho era nítido o suficiente pra eu chegar a uma resposta capaz de eu, mesma, me convencer. No começo a recorrência incomodava, depois, passei a achar aquilo simplesmente curioso.

De uns tempos pra cá, volta e meia aparece o entardecer numa rota que já chega a ser, pelo menos pro inconsciente, praticamente 'familiar'. Mas, nesse caso, o alaranjado da estrada de chão batido (é essa imagem bem nítida que eu guardo) dá um conforto grande que sepulta da lembrança sequer a necessidade de perguntas.

Necessidade sepultada como o espinho -- pequeno, sorrateiro, indolor --aninhado esses dias no peito, pouco abaixo do pescoço. Não era um sonho, mas o fruto de uma colheita desastrada no pé de limão do avô. Foi extraído com tão pouca balbúrdia --e sim, sou involuntariamente bem fresca com coisas do tipo --que, por si só, aquilo deveria ser O alívio.

Extraí o espinho.

*

"Comporte-se como se seu comportamento fosse repetido indefinidas vezes"; "ato repetido vira hábito, e o hábito vira destino"; "o padrão de comportamento depende, sim, do padrão de pensamento"; "(...) e você estaria condenado a viver para sempre a vida que escolheu viver. Qual seria seu sentimento diante desse destino?"; "(...) mais responsabilidade por aquilo que fazemos".

Resolvi espetar esses outros espinhos na carne depois de uma leitura proveitosa e com a qual, meodeos, eu precisava há tempos me deparar. Só então reparei no tamanho da minha displicência com o que de mais sagrado eu poderia preservar na tal estrada cor de laranja.

*

10.7.12

Uma sensação estranha de que o ano se resumiu a uns poucos meses, poucas semanas, quando na verdade se passou na maior parte, e o acúmulo de informações e de cansaço o extrapolam.

Sensação de que uns pares de anos não são nada e ao mesmo tempo são muita coisa. De que décadas, no ranger dos dentes, não passam de poeira a ser limpa. Ou de que horas, dias, semanas e meses se solidificam espaçada e incomodamente quando o belo que os representa --ainda que, fato, apenas numa fotografia --deixa que os olhos se percam no tempo.
Esses olhos são teimosos demais, meu Deus.

Não sei, mas viver e pensar e agir com simplicidade requerem uma sabedoria que ainda não descobri. Quem sabe espanando a minha própria poeira, consiga encontrar algo numa superfície de textura que hoje me é indefinida; a ver.

O curioso é que tem feito dias de muito sol e pouca névoa.
O curioso é que eu insista em me surpreender.
--------------------