Sensação de gratidão imensa por essa brasileira. Tenho sido avessa a cartas, mas, se estivesse viva, ela seria a destinatária de uma, bem especial (pra autora), de poucas palavras – que escrevo mentalmente, todos dos dias, terminada a leitura (aqui, sim, difícil achar um fim; quer-se sorver tudo no menor e no maior tempo): Clarice é poesia pura.
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Uma dessas publicações, de 29 de março de 1969, está transcrita abaixo. Curioso procurar pelos textos dela na web e achá-los em partes – ainda que não sejam, como se observa este um, extensos. Ainda que fossem! –; assombroso ver que os ‘rapidinhos’ cortam trechos inteiros, substituindo-os por colchetes e reticências, e suprimem o que jamais poderia sê-lo. Acreditam, assim, estar difundindo a obra da escritora. A que custo?
E deu.
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O impulso
Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. Há um perigo: se reflito demais, deixo de agir. E muitas vezes prova-se depois que eu deveria ter agido. Estou num impasse. Quero melhorar e não sei como. Sob o impacto de um impulso, já fiz bem a algumas pessoas. E, às vezes, ter sido impulsiva me machuca muito. E mais: nem sempre meus impulsos são de boa origem. Vêm, por exemplo, da cólera. Essa cólera às vezes deveria ser desprezada; outras, como me disse uma amiga a meu respeito, são cólera sagrada. Às vezes minha bondade é fraqueza, às vezes ela é benéfica a alguém ou a mim mesma. Às vezes infringir o impulso me anula e me deprime; às vezes restringi-lo dá-me uma sensação de força interna.
Que farei então? Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.
Lispector, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
-------------------vagabond - wolfmother