"Você já se adaptou?", pergunta em 11 de cada 10 oportunidades fora de SP. "Está feliz?", perguntam os queridos, mas não exatamente íntimos.
Não sei por que, esses dias encasquetei (#vem31feelings) com isso. Adaptação, na psicanálise, é algo como a ação do sujeito que modifica o meio e cria o equilíbrio do próprio ego. Não sei se um "sim, certamente" caberia dentro dessa interpretação: porque não sei se me adaptei à cidade ou se ela que me acolheu --com toda a aspereza que desponta pra quem insiste em ver nela só isso --me devolvendo, desafiadora, o velho "decifra-me ou te devoro".
Duas frases que me chamaram muito a atenção nesses 10 meses de vida paulistana. Paulista. Uma é a pichação num bar da Consolação; pichação velha, segundo os caros daqui. "É pouco hoje pra tanto ontem", já perto da Paulista, justamente o reduto mais repleto de hojes diversos na cena da capital. Sotaques, tipos, trejeitos, gírias, tudo misturado, diferente e cheio de sentido na massa que pára o trânsito dos carros quando resolve atravessar em bando cada esquina.
Imagino --na verdade, eu só tento imaginar --o beco em que deveria estar o pichador, ou quem bolou a frase, pra achar mesmo que o passado poderia tomar um espaço tão grande em presente e futuro. "O presente é tão grande / não nos afastemos". O que Drummond interpretaria? "Não nos afastemos muito / vamos de mãos dadas". Ok, Drummond, você venceu.
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"Não existe amor em SP", canta o rapper que já assinou "Criolo Doido", hoje só Criolo. Essa outra frase, nome de música, na verdade mais me desafia a achar um contraponto do que necessariamente me causa estranheza. "Não precisar morrer pra ver Deus / não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você", continua o rap melódico que compara a cidade a um buquê de flores mortas num belo arranjo.
Não sei se ele canta a São Paulo do trânsito desesperador (minhas mãos e pés que o digam, pois sofrem de nervoso) e da sujeira (quanta sujeira, quanta); a São Paulo das filas intermináveis pras tarefas mais simples ou pras mais pitorescas; a São Paulo das chuuu(...)uuvas de janeiro e do tempo que pode demandar manga curta ao meio dia e pashimina no pescoço, horas mais tarde. A São Paulo que vê filas no parque --verdadeiras filas indianas de bikes, triciclos e de gente correndo atrás de saúde (eu acho) --; que tem o transporte público caro (claro, o nosso é também o mais caro "do Brasil") e só eficiente porque, de carro, se levariam horas a mais. Só por isso.
Aí eu vejo de manhã, quando muita gente ainda está mal humorada pelo sono que sobra, desconhecidos dizendo um "pode segurar, por favor" ao oferecer o próprio braço como barra pra que a pessoa ao lado não surfe a esmo, entregue ao desequilíbrio, no vagão inundado por aquele mar humano.
Aí eu me esqueço do bilhete do transporte no dia chuvoso e conto as moedas, insuficientes --o cartão de débito não garante segurança ilimitada, sabe --, sob o olhar da senhorinha japonesa que, sei lá se ela se lembra da cara de tantos, mas fica ali na catraca todo dia. "Quanto você tem aí?" "R$ 2,25". Ela olha pro senhorzão da bilheteria blindada e diz um "pode vender. A diferença fica por minha conta" que salvou, se ela soubesse, mais que uma manhã de trabalho sem (muito) atraso. Salvou uma certeza, com broto já cheio de folhas novas, de que a letra do rapper está tão na superfície quanto um "você se adaptou?"
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Gosto de conversar com os taxistas. A diversidade de gente que eles transportam, tenho pra mim, os torna profissionais multidisciplinares: cada um tem um lado meio psicólogo, meio roteirista de novela e de documentário, meio antropólogo, meio cientista político, meio policial, meio animador de platéia, meio agente da CET, meio meteorologista, meio ombudsman do Datena ou dos "inimigos" do Datena. Alguns são meio escrituários de repartição pública, é verdade. Mas a imensa maioria tem pedaços de história de vida que quer passar adiante, ou quer receber a de quem está ali, ainda que temporariamente.
Ontem, o tiozão me explicou que a filha, recentemente falecida, tinha dito pouco antes pra ele que não sabia como fazer com que a filhota de dez anos não gastasse tanto, e sim, economizasse. Ele garantiu que tinha a solução: prometeria à neta que lhe daria o mesmo valor economizado se, ao cabo de cada mês, ela tivesse alguma quantia nos bolsos. Se a menina tivesse R$ 30 e os economizasse, portanto, teria R$ 60 na mão dali um tempo. Por essa, nem dona Armênia esperava. Estoicismo na chon, pensei.
Ele contou a história com umas gargalhadas sinceras, citando as elucubrações da neta pra deixar de lado, por exemplo, o lanche do McDonald's. "É um bom laboratório, não? Porque deve sair bem mais em conta pro senhor, no final", sugeri. "É mais em conta sim. Mas não é bem um laboratório: eu faço isso há anos com meu filho e é um sucesso". Nova gargalhada dele --acho que da própria esperteza, deve ter pensado.
E então, no meio hoje daquela fila de bikes e patins ansiosos pra passar, e, logo em seguida, na brisa que o chafariz gigante do parque proporcionou, eu tive uma grata sensação de que São Paulo tem muito desse tiozão do táxi. Ou não haveria tanto contraponto pra tanta frase pronta sobre esta terra, acredito.
Fitz & The Tantrums - Breakin' the chains of love
8.9.11
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